Ao primeiro olhar, o do transeunte que flana sem outro objetivo que o da distração, o lugar parece uma caixa de música gigante que nos convida a entrar – como se a lógica de Alice no país das maravilhas tivesse tomado o coração de Lisboa. Nas montras da Joalharia do Carmo, os bonecos de Barcelos concebidos pelos famosos irmãos Baraça têm o movimento mecânico das minúsculas bailarinas em tutus das caixas de música das nossas infâncias. O que faz todo o sentido já que, atrás deles, no interior da loja, o que se guarda são jóias intemporais, concebidas segundo a “gramática” da milenar arte da filigrana.

Hoje, como há 100 anos, quando a Joalharia do Carmo abriu portas nesta famosa rua do Chiado, já na época dedicada ao mais requintado comércio da capital, a filigrana reina entre os interiores art déco.

Uma característica que, como sublinha a responsável pela loja, Bárbara Sousa, se acentuou a partir de 2020, quando o grupo Valor do Tempo (sócio da Mensagem de Lisboa) a adquiriu aos anteriores proprietários, sendo, desde 2022, inteiramente dedicada a peças em filigrana.

Dentro da Joalharia do Carmo, a filigrana ainda reina. Foto: Líbia Florentino

Mas não se pense que aqui só encontramos os tradicionais corações de Viana do Castelo (que fizeram, aliás, as delícias de Sharon Stone há alguns anos) ou outros artigos relacionados. Para os espíritos mais vanguardistas, importa dizer que a filigrana soube renovar-se, sem perder o essencial: aqui encontramos também peças com um design arrojado e contemporâneo, que, para além do fio de ouro ou de prata batido e trabalhado, pode incluir pérolas e pedras preciosas.

E não se pense, também, que a Joalharia do Carmo é apenas um bonito ponto de distribuição. Como explica Bárbara Sousa, a loja trabalha, neste momento, com 16 unidades de produção de filigrana, distribuídas maioritariamente pelo Norte do país como Gondomar, Póvoa do Lanhoso ou Ovar.

Um panfleto antigo da Joalharia do Carmo.

“As peças são todas feitas manualmente e, como tal, nenhuma é igual à outra“, conta. A ideia é valorizar o saber de experiência feito dessas pequenas unidades, por vezes familiares.

“Há uma família a trabalhar connosco, que já vai na sexta geração dedicada à filigrana.”

Este contacto direto com os criadores é um elemento que surpreende os clientes, admite Bárbara Sousa. “Há uns tempos, um cliente viu um anel bastante complexo, em forma de rosa, e perguntou quanto tempo é que fora preciso para o fazer. Liguei para o artesão a perguntar, servi de intérprete entre os dois, já que o cliente era estrangeiro, e o senhor ficou maravilhado. A questão da proximidade com a narrativa das peças surpreende muito as pessoas, que não estão habituadas a isso.”

Outra surpresa é o mundo de possibilidades que a filigrana oferece. No ano passado, a Joalharia do Carmo encomendou a um artesão de Gondomar, Arlindo Moura, uma ovelha bordaleira em tamanho real, que esteve exposta na loja e no Centro Interpretativo da Filigrana, em Seia. O autor, que já se tornara conhecido com a criação do vestido com corpete em filigrana que esteve na Expo 2020, no Dubai, e com o coração de filigrana oferecido à atriz espanhola Úrsula Corberó, gastou perto de quatro meses e mais de 7 kms de fio no trabalho que agora está exposto no Centro Interpretativo da Ovelha da Serra da Estrela, em Santa Marinha, Seia.

Nesta relação com as unidades de produção, afirma ainda Bárbara Sousa, a Joalharia do Carmo procura valorizar o trabalho dos artesãos. “Não regateamos preços e procuramos sempre pagar o devido valor. Fazemo-lo, por exemplo, com as enchedeiras, que são as senhoras que preenchem o esqueleto das peças e que, muitas vezes, trabalham nas suas próprias casas.”

Para valorizar artesãos e peças, a Joalharia do Carmo é pioneira na introdução do projeto-piloto da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, o Certificado Digital UniqueMark, que traz para a era digital o processo de certificação dos metais preciosos.

Além disso, cada peça é acompanhada por um booklet, com ilustrações da artista plástica Isabel Botelho, que conta ao comprador a história da peça que leva para casa.

No coração da muralha do Carmo

A riqueza da fachada e interiores a Joalharia do Carmo não engana. Estamos diante perante uma Loja com História. E muita.

Como diz Bárbara Sousa, tudo aqui foi mantido no respeito pelo formato original: o logotipo concebido pelo arquiteto Manuel Joaquim Norte Júnior (autor também dos projetos da Brasileira do Chiado, Pastelaria Versailles e Nicola), em forma de coração coroado, bem como os interiores por ele concebidos: vitrais, escadaria, mas também elementos decorativos como espelhos, jarras e, claro, os preciosos lustres de cristal Baccarat.

O que o visitante talvez não saiba é que esta Joalharia do Carmo está incrustada numa das mais interessantes obras de engenharia realizadas na cidade após o terramoto de 1755. O que ainda é visível na parte cega da fachada, que está nos pisos superiores deste quarteirão da Rua do Carmo. Com efeito, o plano para a reconstrução da cidade encomendado pelo Marquês de Pombal não permitia a existência de ribanceiras pronunciadas, favoráveis aos aluimentos de terra. 

Assim, a zona entre o Convento do Carmo e a atual Rua do Carmo sofreu grandes transformações: o declive violento, que existia até aí, desapareceu graças à realização de um corte vertical. Para isso, escavou-se e removeu-se terra , construindo-se a denominada Muralha do Carmo (como suporte ao novo Convento e igreja dos Carmelitas que se pensava reconstruir), que se prolongava até à Rua do Príncipe (atual Rua Primeiro de Dezembro).

A Rua do Carmo de antigamente.

Se observarmos fotografias da rua no final do século XIX ou no princípio do século seguinte, podemos ver ainda a muralha tal como esta foi construída, com uma dupla fileira de arcos. rodeada de lojas e serviços vários, anunciados ao transeunte por grandes placas metálicas.

Esta realidade começou a mudar em 1917, quando o comerciante Joaquim Simões requereu à Câmara Municipal de Lisboa autorização para construir estabelecimentos na parte ainda desaproveitada da muralha. Iniciava-se, assim, um longo processo, já que a autarquia e o Ministério das Obras Públicas tinham de se certificar se o plano não punha, de algum modo, em risco a segurança da estrutura setecentista.

Sob a direção do engenheiro Artur Cohen, as obras prolongar-se-iam durante quatro anos, dificultadas quer pelas características da própria muralha (dentada no interior para melhor se fixar aos solos), quer pela composição do terreno, essencialmente composto por argila muito firme. Mas, em 1924, finalmente, abririam ao público a sapataria Atlas (n.º 87-D), a Companhia Wagons Lits (n.º 87 C) e a Joalharia ainda designada Raúl Pereira & Ca (87 B). Cerca de um ano depois, em 1925, juntar-se-ia ao conjunto a Luvaria Ulisses.

A designação  atual, Joalharia do Carmo, surgiu em 1926, quando Alfredo Pinto da Cunha, seu irmão Gabriel e Alberto Vieira de Sampaio, proprietários de uma ourivesaria do Porto (a Ourivesaria Cunha), adquiriram a loja a Raul Pereira. Manter-se-ia nesta família até 2020.

Nos últimos 100 anos, a loja conheceu todas as fases da vida do Chiado: do esplendor à quase destruição (com o incêndio de 25 de Agosto de 1988, que lhe rondou as paredes) e à regeneração das últimas décadas. Conheceu os dramas dos refugiados na Segunda Guerra Mundial, que acorriam às ourivesarias da cidade para tentar vender os valores que lhes restavam, e um assalto em 1952, de que há relatórios no próprio Arquivo Salazar, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

A Rua do Carmo nos anos 80, quando foi alvo de uma intervenção polémica, antes do incêndio. Foto de Estúdio Horácio Novais, Biblioteca de Arte / Art Library Fundação Calouste Gulbenkian.

  Credit: Horacio Novais

Mas o fio do tempo corre aqui como se fosse ouro ou prata. Tem a forma do coração coroado idealizado por Norte Júnior há precisamente um século. 


Maria João Martins

Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.


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